Mostrando postagens com marcador primo basílio. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador primo basílio. Mostrar todas as postagens

domingo, 30 de junho de 2013

O jogo dos sentidos em Eça de Queirós



O jogo dos sentidos em Eça de Queirós [1]




            A mais famosa crítica já feita ao romance queirosiano foi a resenha que Machado de Assis publicou de O Primo Basílio logo que o romance foi lançado.
            Não vou tratar aqui em pormenores desse texto tão importante quanto, me parece, mal lido nos últimos tempos. Principalmente porque já o fiz muito recentemente.[2] Mas devo comentá-lo de passagem e topicamente, porque o ponto que me interessa discutir aqui é um aspecto da obra de Eça que, desde o texto de Machado, está devidamente identificado na sua importância e singularidade, mas nem sempre tem sido corretamente avaliado e interpretado do ponto de vista da estrutura do universo queirosiano.
Trata-se do que se poderia chamar de sensualidade ou, para usar uma palavra que elimine  impertinentes conotações sexuais, sensoriedade.
            Machado de Assis percebeu bem que a notação de gestos, odores, matizes, volumes, texturas, sons e sabores tinha enorme importância na narrativa do romancista português. Mas, sendo a sua perspectiva informada por uma exigência de funcionalidade dramática e psicológica, entendeu essa notação minuciosa como gosto pela superficialidade e atendimento a preceito de escola. Foi o que denominou, no primeiro registro, "preocupação constante com o acessório" e, no segundo, estética de "inventário".
            Para Machado, naquele momento, o que contava para a qualidade de uma narrativa era a sua estrutura dramática, centrada na tensão criada entre personagens ou dentro de personagens. Era só em função desse núcleo de interesse, que é em última análise o quadro psicológico, que poderiam ganhar sentido os gestos narrados, bem como as percepções sensórias e a construção minuciosa de ambientes. Ou seja, à descrição e à apresentação sensual Machado só reconhecia pertinência na medida que estivessem diretamente subordinadas ao núcleo dramático, a serviço dele. Daí que não pudesse receber bem o texto de Eça, no qual predomina um outro tipo de linguagem, de orientação mais épica (no sentido de mais descritiva), em que o mundo narrado é iluminado sob vários ângulos e apresentado ao leitor como sendo composto de objetos interessantes em si mesmos.

            No caso de O Primo Basílio, Machado condena três cenas do romance, afirmando que elas só existem devido ao gosto pelo acessório. São elas o jantar na casa do Conselheiro Acácio, a conversa de Julião e Sebastião na confeitaria e a encenação do Fausto no Teatro S. Carlos.
            Embora valesse muito a pena investigar porque justamente essas três cenas parecem hoje, cento e vinte anos depois, primorosas, não posso fazê-lo aqui. Assim, limito-me a comentar rapidamente a última delas, a cena da ópera, que está no final do livro.
            Ora, para compreender o lugar e a função da cena, é preciso lembrar que a música do Fausto de Gounod é uma das referências mais recorrentes ao longo da narrativa. Uma das suas árias é mesmo uma espécie de leit-motiv do romance: a que Fausto canta no momento imediatamente anterior à sedução de Margarida. Essa ária é cantada primeiro por Jorge, o marido, e depois por Basílio, no momento mesmo em que Luísa a ele se entrega pela primeira vez. No dia em que assiste ao Fausto no teatro, o pensamento de Luísa está em Juliana, a empregada chantagista, e no que estaria acontecendo em sua casa. É nesse momento de ansiedade, ao lado do marido, que Luísa ouve a ária sobre os astros de ouro e rememora a própria sedução. A cena, portanto, tem uma função precisa: a função de conjugar, numa recollectio irônica, os motivos fáusticos espalhados ao longo da narrativa e a decepcionante história pessoal e amorosa de Luísa. E a forma como o faz é pela descrição da reação emocional de Luísa a um mesmo estímulo que fora tão importante no momento anterior, o da sua sedução. Do momento em que se ouve a ária em diante, tudo descamba: Luísa desinteressa-se, enjoada e ansiosa, da cena do palco, e é pelos seus olhos que o leitor vai contemplar uma cena ridícula de briga, bebedeira e vômito na platéia.

            O Fausto, embora seja a principal, é apenas uma das muitas referências ao universo da ópera e da música profana em O Primo Basílio. Desde a primeira página do romance, até o momento em que Luísa adoece, o intertexto musical domina absoluto. Depois que seu estado de saúde piora, já não há menção a qualquer melodia. E de tal forma se organiza o intertexto musical, que mereceria uma análise demorada a forma como esse "motivo" se junta a outros "motivos" (literários e pictóricos, principalmente) para formar um sistema bastante cerrado de alusões e antecipações premonitórias, de recorrências de situações e de elementos simbólicos que vão responder pela impressão de grande unidade ao texto do livro. Ou seja, o que proponho é que temos aqui algo muito importante: um tipo de construção textual, que ainda precisa ser descrito com mais rigor e no qual a "solda" entre as várias partes e situações se faz por meio de um recurso que não procede da lógica das ações representadas, nem da coerência ou determinação psicológica das personagens. Na verdade, essa "solda" se dá num nível exterior à necessidade actancial e superior ao da consciência das personagens.
            Para exemplo, basta observar que, no caso específico de O Primo Basílio, não é necessário que nenhuma personagem em particular escute um piano da vizinhança tocando ao longe a Oração de uma virgem,  ou o realejo que repete a Casta Diva e outros temas do momento. É o leitor que deve perceber, em contraponto ao desejo de envolvimento adúltero de Luísa, a ironia presente nesses títulos. É como conversa entre o autor e o leitor que se erige todo o extenso comentário intertextual à história de Luísa, pois as obras lidas ou ouvidas por ela funcionam, ao longo da narrativa, não como causa, mas como contraste às suas experiências efetivas ou como prefiguração do seu destino. Ou seja, Luísa é uma leitora ingênua, mas o romancista e o leitor previsto no texto não são como ela, e podem ir saboreando, ao mesmo tempo em que contemplam a progressiva queda e humilhação da protagonista, a rede de alusões e de comentários metalinguísticos que vão anunciando e pontuando os desdobramentos da intriga.
            Da mesma forma, se observarmos os sonhos sonhados por Luísa ao longo do romance, veremos que também eles se organizam a partir da consciência do narrador e/ou do leitor, e não da personagem. O melhor exemplo é o último deles, em que se monta uma cena teatral na qual o Conselheiro Acácio desparafusa a própria cabeça e a atira ao palco para imitar o gesto do rei, que para lá atirara a esfera armilar. O ato sintetiza tudo o que o leitor já sabe da personalidade de Acácio, pois o viu em muitas situações independentes, em boa parte das quais não estava presente Luísa. Mas nada sugere, no romance, que a percepção que Luísa tem de Acácio seja similar à que o leitor e o narrador têm dele. No limite, pode-se dizer que os sonhos de Luísa são, do ponto de vista de uma estética realista, defeituosos, porque não são verossímeis, nem explicáveis dentro do horizonte de percepção e consciência da personagem.
            Por esse conjunto de motivos, a ficção de Eça pode ser considerada  frontalmente anti-romântica e, nesse sentido, anti-sentimental. Mas dificilmente poderá ser denominada "naturalista", se por essa palavra entendermos o romance em que todos os elementos reivindicam a possibilidade de serem inteiramente explicados ou deduzidos a partir de um conjunto de outros elementos que são entendidos como "causas" ou fatores determinantes passíveis de identificação objetiva.

            Para o Machado de Assis de 1878, essa forma de estruturar o romance e as suas cenas, que não se baseava na tensão psicológica, na originalidade da trama ou no choque de caracteres pareceu superficial e defeituosa. Artificial porque a intenção, ou melhor, a consciência do autor se sobrepõe às motivações internas das personagens, enquanto fator de determinação dos sucessos narrativos. As personagens, para usar sua expressão, lhe parecem "títeres". Defeituosa porque, seja com que objetivo tenha sido usada, a notação excessivamente colorida e objetiva dos ambientes e das sensações experimentadas pelas personagens lhe parece francamente imoral, quando não abjeta.
            É verdade que O Primo Basílio inteiro (e não só O Primo, mas praticamente todos os textos queirosianos) é objeto de um tratamento narrativo que ilumina  as personagens e objetos com uma luz igual e bem distribuída. Machado leu como defeito esse olhar do narrador, que vai recortando, sem destacá-las do fundo geral, algumas figuras medíocres, que nunca se individualizam completamente e que tendem, nas melhores soluções, para a franca caricatura, como é o caso do Conselheiro Acácio.
             Isto é o mesmo que dizer que Machado não descobriu (ou pelo menos não valorizou) aquilo que constitui o princípio de coesão da melhor narrativa queirosiana: a construção arquitetônica da obra como sucessão e modalização de alguns poucos motivos sistematicamente explorados, amalgamados pelo ritmo de uma frase ágil e por um ponto de vista narrativo que, ao mesmo tempo, marca seu distanciamento afetivo ou ideológico em relação ao ambiente e às personagens e se compraz no tratamento sensual desses ambientes, objetos e personagens, nivelando-os como focos independentes e dignos do mesmo tipo de atenção. Mais do que isso, abstraindo deles características puramente sensórias que funcionam, ao longo do texto, como "temas" (no sentido que essa palavra tem em música), que permitem traçar correspondência entre cenas, identificar personagens, garantir um sentido de conjunto.

            Por isso mesmo, o leitor queirosiano típico não tem o mesmo perfil do leitor de textos românticos, nem do leitor de textos naturalistas. É antes um leitor que se identifica com a voz narrativa, com a força construtiva do texto, e pouquíssimas vezes, ou quase nunca, com as suas personagens. Nesse universo, que se constrói sobre uma singular conjunção de forma discursiva épica, atenta à materialidade do mundo e à história das coisas, com conteúdo burlesco ou rebaixado, a coesão do conjunto não pode estar no nível do narrado, nem na forma interna da trama. Está, sim, no estilo, no sentido de construção textual.
            No que toca à forma geral de organização da narrativa, o resultado, nos melhores momentos, é o inconfundível olhar distanciado e profundamente irônico, mas ao mesmo tempo muito amoroso dos objetos, das paisagens e das sensações por elas desencadeadas. No que toca à expressão linguística, a conjugação do distanciamento psicológico e de amor pelos objetos produz um estilo colorido, no qual o adjetivo (esse grande desafeto dos escritores da linhagem realista) é uma estrela de primeira grandeza, que apenas cede o lugar, amiúde, ao advérbio, com o qual, aliás, frequentemente se confunde.

            Várias outras considerações poderiam ser feitas sobre o que constitui "o universo queirosiano". Com esta breve apresentação, pretendi apenas dar um tratamento possível à generalidade do tema desta mesa. Isto é, tentei apontar em que consiste o que julgo o traço mais queirosiano dentro do universo da prosa moderna de língua portuguesa.


[1] Texto escrito para ser lido na mesa-redonda O universo queirosiano, organizada pelo Instituto Camões na IV Feira Pan-Amazônica do Livro (10 a 19 de novembro de 2000, Belém, PA). Os tópicos estão desenvolvidos na introdução ao romance, pela Ateliê Editorial, também neste blog.
[2] Eça e Machado: críticas de Ultramar. In Cult - Revista brasileira de literatura, n.º 38. São Paulo: setembro de 2000.