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domingo, 21 de janeiro de 2024

O que é poesia?

 Uma amiga me diz que gostaria de ler a minha definição de poesia. Adoraria atender a esse pedido, mas a verdade é que não tenho uma. Ou melhor, tenho algumas, mas nenhuma me parece razoável ou pacífica, e por isso em nenhuma me sinto confiante. Mesmo para definir literatura creio que esbarro em alguma dificuldade. Mas não preciso fugir para tão longe, ou para ainda mais longe, começando pela definição de arte – se cedesse ao impulso de dizer utilizar esse conceito na montagem do outro. Em várias das definições que o ChatGPT transcreveu, alterou ou inventou o pendor idealista me incomoda. E penso que em outras tantas o que temos é apenas eleição de um tipo de poesia. Um protesto ou um princípio. Por exemplo, naquela primeira, em que a poesia de um texto seria atestada pela impressão de que a tampa da cabeça foi arrancada, de que se trataria? Quero dizer: uma pessoa lê/escreve alguns versos e depois (ou antes, ou mesmo durante) observa a sensação que aquilo que lê/faz ou está fazendo produz. Se foi essa de arrancar a tampa da cabeça temos poesia e se ela não existiu não temos. Mas digamos que a pessoa tenha lido/escrito e a tampa da sua cabeça agarrou-se firmemente no seu lugar e não pareceu querer ser arrancada. Nesse caso não houve poesia? Só meras palavras num papel ou na memória? Ou existiu apenas poesia ruim, considerando que essa sensação de cocuruto arrancado pode existir ou não existir ao longo de um livro de um mesmo poeta, despertada por coisas que objetivamente se parecem muito entre si? Nesse caso “poesia” parece querer apenas dizer “boa poesia”, ou o que é mais grave: não haveria má poesia, pois má poesia simplesmente não seria poesia. Talvez isso esteja implícito em várias outras definições. E não só na definição de “poesia”, mas também na de “poeta”, porque eu me lembro de ter visto, há alguns anos, dois poetas sexa ou septuagenários, que em tempos participaram inclusive do mesmo movimento poético, negarem-se pelos jornais respectivamente o título de “poeta”. Do que eu teria de concluir que, sendo ambos indiscutivelmente praticantes da mesma modalidade de arte (com palavras apenas ou com palavras e algo mais), se um deles não merece a denominação é porque poesia = boa poesia, assim como poeta = bom poeta. Ou, se quisermos variar: poesia = poesia significativa, poesia inovadora, assim como poeta = poeta significativo, bom poeta. Bom, mas eu não posso me dar a esse luxo. E não me dou a esse luxo. Como leitor amador ou como leitor profissional de poesia (por assim dizer) não creio que tenha o direito de sair por aí dizendo “este não é poeta”, “este livro de poesia não é de poesia” e assim por diante. Para mim, se é verso, a coisa pertence à denominação “poesia”; ou ainda: se o autor escreve na capa de um livro que o conteúdo dele (com ou sem versos) é poesia, então não sou eu quem vai dizer que não é. Resta-me pensar o que ele quer dizer seja com a inserção daquilo no gênero, seja com aquilo mesmo. Posso não apreciar, não entender, detestar ou até rir daquilo, mas não me atreveria a dizer “isto não é poesia”. O mesmo se dá com revistas de poesia: se dizem que é poesia o que vem ali, não nego. Apenas observo, tento entender o que vem ali, assim como o porquê de vir ali ou de ser assim como é. E logo trato de ver se gosto – o que é diferente de apenas entender ou de apenas me comprazer. Porque o gosto (tal como eu o entendo) inclui uma aposta na verdade, por assim dizer. Eu penso ou sinto que algo vale a pena tanto pelo que é quanto pelo que percebo de projeto, e quando digo que gosto estou apostando em algo que me parece bom e justo. Sinto ainda que tal gosto é uma aposta no futuro, ou – se vou escrever algo sobre – um parâmetro para uma tentativa de ação sobre o futuro. Esta é uma linguagem pesada, talvez, mas é mais ou menos o que percebo quando reflito nessas coisas. Pensando nesses termos, talvez eu até pudesse dizer, nesse sentido específico, o que eu penso que seja *poesia*, isto é, se com essa palavra eu quisesse designar apenas o que eu considero que seja *boa poesia*. Em tal nível de generalidade, seria algo como revelar as escoras do meu gosto pessoal, do meu prazer com a leitura e da minha aposta no futuro. Aí se incluiria, sem dúvida, a perícia, o domínio do material (por assim dizer). Não apenas no sentido de domínio da tradição ou da linguagem. Mas num nível mais básico: o domínio daquilo que a pessoa tem em mãos para fazer o que quer fazer. E isso leva a um ponto importante: é preciso que eu sinta que de fato o poeta quer fazer alguma coisa, tem um objetivo interessante, perceptível, significativo. Dizendo de modo um pouco bruto, é como se eu me perguntasse: por que essa pessoa decidiu dizer o que diz em versos, ou ainda da forma como disse? E ainda: “o que essa pessoa tem a dizer, para o dizer assim? Por fim, já que minha costela romântica não me deixa em paz, acabo sempre por me perguntar: “É algo importante o que ela diz ou tem para dizer? É algo que valha a pena ler/ouvir?” Se as respostas a essas perguntas não forem convincentes, tendo a não gostar ou a não me deter sobre o objeto. De modo que me encontro aqui, por vias tortas com a definição de Emily Dickinson: se eu sinto que minha cabeça se abriu lendo algo identificado como “poesia”, então eu concluo que é boa poesia, que é algo que vale a pena reler, preservar, tentar incorporar. Mas se eu leio algo e fico indiferente ou francamente entediado, largando logo ou me arrastando até o final por dever de ofício ou obrigação de amigo, então não vou dizer que não é poesia. É apenas algo que não me interessa preservar, muito menos tentar incorporar. Mas vejo que depois de tantas voltas termino no ponto de partida, isto é, confessando a dificuldade (ou a falta de ânimo) de definir poesia.

domingo, 16 de julho de 2023

Poesia, pontuação, minúsculas, corte

 Nesta manhã friorenta domingueira, vejo que me marcaram numa postagem do Facebook. E que há ali um enorme debate, por assim dizer. Na verdade, uma série de declarações, a maior parte profissões de fé. Vejo ainda que me marcaram em outra questão. Não me animei a responder ontem. Mas agora, enquanto não me animo a deixar cama, pensei no assunto.


Então: emprego ou ausência de pontuação em poesia; o corte do verso na poesia contemporânea; o uso ou não de maiúsculas em começo de verso ou frase. 
Uma resposta simples, considerando a maior parte dos casos, poderia ser: são marcas de “poesia”. Algo como uma reivindicação de pertencimento a uma categoria. Uma demanda de um modo de leitura: leia-me como poesia – é o que dizem esses procedimentos ostensivos. O que quer dizer, mais ou menos: leia devagar, interprete, faça um investimento de sentido. Ou seja: me leve a sério! 
Isso para a má poesia, alguém poderia dizer. Assim como a medida e a rima foram em outros tempos. E é certo também. 
Será verdade que hoje se produz muito mais má poesia do que em outros tempos? Talvez seja, num sentido específico: o de que as marcas de poesia se tornaram mais fáceis. Não é preciso dominar a contagem das sílabas, nem buscar palavras de final igual ou parecido. A mesma tolice pode ser dita num soneto ou num pseudo-haicai. E este tem, sobre aquele, a vantagem da brevidade. (O que favorece tanto o autor quanto o leitor, diga-se.) Mas sem dúvida é mais difícil fazer (e ler) um soneto do que um poema pequeno de 3 versos sem rima. É certo também que é mais fácil fazer um “poema moderno”, ou modernista, em “versos livres”, frases sem pontuação e sem maiúsculas, do que compor em terza rima, em quadras ou mesmo em estrofes livres, de mesmo metro. 
Má poesia, porém, sempre houve. Não fazemos ideia do que se acumulava nos “álbuns” que muitas pessoas mantinham no século XIX. Mas podemos facilmente ver que o próprio soneto não era barreira suficiente ao derramamento de banalidades. O que muda, eu acho, é que nos dias de hoje a visibilidade é maior, por conta não só do barateamento da produção em papel, mas principalmente porque a eletrônica permite a publicação imediata e praticamente sem custo. E o custo, social ou material, terminava por ser um filtro. De classe, poderiam logo gritar alguns. Sim, mas não só. De qualquer modo, a facilidade de publicação nas mídias sociais é um estímulo à produção, assim como a organização de comunidades de autores-leitores, em grupos, sites, blogs. Nesse sentido, pode ser, sim, que hoje haja muito mais má poesia (desde que se admita que o que se autodefine como poesia seja por isso mesmo poesia) circulando do que em qualquer outra época.
Na poesia clássica, o verso era definido pela medida. Por isso o enjambement, o terminar da ideia, da frase ou o fechamento do sintagma no verso seguinte era muito comum. Como nos primeiros versos da Eneida:

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris 
Italiam, fato profugus, Laviniaque venit
litora,

Fechando um pouco o foco: em português, o verso foi também por muito tempo definido pela medida. Não já baseada em compassos, mas em número de sílabas. Assim, completada a medida, percebia-se completo o verso. Nesse sentido, a rima era apenas um reforço, do ponto de vista métrico.
Dissolvido o metro como definidor do verso, sobra a rima. E, além dela, várias formas de acoplamento, paralelismos. E ainda, em certo tipo de verso livre, o simples término da frase ou do conceito.
Homero era para ser ouvido. Virgílio já era para ser lido, embora o metro implicasse a oralização, chamasse aquele tipo de cantilena que se pode imaginar como o modo de leitura da poesia antiga e que persistiu, por exemplo, na missa. Já Dante parece sentir a leitura como forma principal de recepção da sua obra épica, uma vez que ao longo da Comédia tematiza o leitor, dirige-se a alguém que lê, não a alguém que ouve. Não obstante, neles é a medida que define o verso. Assim como em Os Lusíadas ou em O Uraguai.
Voltando ao ponto: quando a medida deixa de ser requisito do verso, é preciso buscar outras formas de o definir. E em muitos casos reagir a qualquer definição, tematizar inclusive isso, é uma forma parasitária de verso, que se sustenta e define por oposição, negação da medida. Nesse caso, a marca formal, o mínimo múltiplo comum da variedade é o corte da linha – porque se trata, quase sempre, de escrita.
Até agora, nesta parte, não falei propriamente de poesia, só de verso. Verso que podia ser utilizado inclusive para escrever o que hoje não definimos como poesia.
Então voltando ao ponto: os procedimentos contemporâneos (falta de pontuação, falta de maiúsculas, corte violento e “arbitrário” dos sintagmas e dos vocábulos) são uma reivindicação de “poesia”, isto é, de pertencimento a um gênero. No limite, uma reivindicação de uma forma de leitura que invista no sentido, na necessidade da forma. Ainda quando a falta de sentido e a arbitrariedade da forma sejam ostensivamente buscadas. Porque o que parece definir o gênero, em termos modernos, é a necessidade. A não-arbitrariedade (repetindo: inclusive a não arbitrariedade da encenação de arbitrariedade). 
Na maior parte dos casos, esses jogos se processam no plano da escrita e da leitura silenciosa, atenta à tipografia e à distribuição no espaço do papel ou da tela. Daí que os recitais desse tipo de poesia, a leitura em saraus, sejam normalmente muito aborrecidos. Porque ali a reivindicação de “leia-me como poesia” não se sustenta no texto lido. Daí também o esforço de encontrar alguma diferença no tom de voz, ou de apoiar o texto no ambiente.
A dissociação entre poesia e verso chegou a ser total, em algum momento. Mas mesmo nesse caso, como mostra o fato de que nunca se abdicou da denominação “poesia” ou “poema”, persistiu a mesma reivindicação de pertencimento a um gênero, ou seja, de uma forma de leitura que faça no texto um decidido investimento de sentido. O que cria a necessidade de manifestos e, como eles não bastam, de um tipo de manual ou guia de leitura, que caracteriza alguma poesia de vanguarda e inclusive favorece a criação de uma especial linhagem de poetas-críticos. Muitas vezes, poetas-críticos-e-intérpretes-de-si-mesmos.
Creio, porém, que a divagação domingueira está se afastando muito do tópico daquela postagem. E é hora de ver o sol e aproveitar o dia.

terça-feira, 24 de março de 2015

Notas soltas

24 de março de 2015

Leitura literária: leitura da competência técnica, leitura da intertextualidade. Ambas pressupõem o repertório. Porque a competência técnica, a não ser que seja uma demonstração de princípios gerais, não se demonstra sem o sentido do procedimento num dado quadro cultural. A menos que se acredite num vetor evolutivo, num caminhar para o melhor ou mais puro ou mais econômico. Como não é sequer preciso demonstrar a falta de razão nessa crença, o procedimento é sempre um gesto desenhado contra um pano de fundo de expectativas de satisfação e de recusa, que lhe dá o sentido no momento em que é lançado. E esse pano de fundo “gruda” o objeto de tal modo que a tentativa da sua reconstituição se chama ensino, crítica e história da literatura. Mas a leitura propriamente literária é a do texto num dado registro, isto é: a compreensão de como ele se apropria do passado (incorporar ou recusar, nomeando, é o mesmo, nesse caso) e assim se insere no que há algum tempo chamávamos tradição. Há vários modos de um texto reivindicar o nome “literatura”. Inclusive reivindicando a denominação negativa, que poderia ser antiliteratura, por exemplo. Porque a reivindicação de pertencimento à literatura é uma demanda por uma atitude de leitura, por uma atitude do leitor. Os modos mais simples são a ocupação de um lugar: uma revista literária, um livro. Reivindicar por metonímia, diria. Ou por contágio. Também se reivindica pela ostentação do procedimento associado ao registro, como no caso das linhas interrompidas, que proclamam a poesia. E, por fim, nas formas mais complexas, pelo diálogo com outras obras, pela paráfrase, alusão, paródia, citação: uma reivindicação por metáfora, talvez pudesse dizer. Essas, porém, exigem mais do leitor: exigem a identificação do texto glosado, emulado, recusado ou indiciado – às vezes por uma palavra apenas, ou simples torneio sintático. Exigem um repertório de leituras propriamente literárias. E talvez por isso mesmo tenham sido as formas de produção e recepção que mais prontamente subsumiram o propriamente literário.
Para quem escreve literatura – e mais especificamente para quem escreve poesia – uma questão grave é que não há mais amplo repertório comum; pelo contrário, apesar da disponibilidade da informação e do acesso universal aos textos propiciado pela tecnologia, é cada vez mais estreita a base comum sobre a qual fazer funcionar a intertextualidade. Vê-se isso com mais clareza na dificuldade de fazer paródias. Sem um repertório “clássico”, no sentido de repertório comum, a paródia seca. Na modernidade, a intertextualidade corre sempre o risco de se tornar críptica (o que, diga-se, pode ser um efeito almejado e um poderoso elemento de produção sentido, como se vê, por exemplo, em The waste land). E mesmo a alta paródia e exige a mediação de um leitor especializado ou hiperespecializado – como se vê nesse mesmo poema. Por isso mesmo, em muitos casos contemporâneos a ostensiva intertextualidade tem valor indicial apenas, trazendo para dentro referências tão evidentes que já não têm poder algum de significação, além do de conclamar o literário ou reivindicar o pertencimento a um clã – o clã da pedra, por exemplo, se fosse para referir o mais simples e banal hoje na poesia brasileira. Por outro lado, a incorporação discreta corre o risco de não produzir nenhum sentido no leitor, ficando a esperança em que um remanescente especialista um dia a revele, explicitando a referência para que ela possa finalmente atuar como elemento de sentido pleno. Ou então, o que é o pior, a incorporação discreta não se decifra como apropriação legítima, que busca, com a redução da revelação da co-autoria, que o apropriado funcione plenamente e apenas ganhe mais densidade de sentido com a decifração – decifra-se como plágio, essa denominação tão grata à ignorância.
Em algum lugar está escrito que o uso de aspas ao incorporar um texto clássico era considerado, na China antiga, um insulto à inteligência e à cultura do leitor. Pode não ser verdade, mas sobre essa afirmação se poderia reconstruir a utopia da leitura preferencialmente literária.
Não gostaria que estas reflexões matinais, soltas e esparsas antes sequer do café da manhã, fossem apenas uma distopia simplificadora. É certo que o sentido se dá a ler e se produz sobre as ruínas dos antigos modos de leitura. E é provável que isso seja exatamente o ponto sobre o qual se equilibra a nossa modernidade agônica. Mas isso não me faz duvidar do fato de que todo um modo de escrever e de ler passa por um momento singular de transformação, sobre cujas causas e consequências valeria a pena especular, em vez de buscar refúgio nas boas intenções e na reafirmação da crença na perenidade da “literatura”.