segunda-feira, 15 de abril de 2013

As Minas de Momo - poesia cômica no Brasil



[Jornal 12]


As Minas de Momo




Durante todo o século XIX e começo do XX, houve uma intensa produção de poesia cômica no Brasil, que circulou em publicações pequenas e hoje quase desaparecidas. É um mundo ainda por desvendar e conhecer.
Por exemplo, quantas pessoas sabem que existiu uma agremiação carioca chamada Sociedade Euterpe Comercial Tenentes do Diabo, e que ela publicou a partir de 1880 um jornal chamado 'O Diabo da Meia-Noite', com versos como estes?

Macau capital da Grécia,
Com vinte mil habitantes,
Fica-lhe ao norte a Suécia,
Pátria do grande Cervantes.
O clima é muito saudável:
Morre à míngua a medicina.
Seu povo, pouco amorável,
Detesta a raça canina. (...)

E quem faria idéia de que tivesse havido tantos jornais desse tipo, a ponto de a sua listagem encher 30 páginas de livro? Pois agora é fácil saber o que há para ser pesquisado. O mapa da mina, pelo menos, está feito, e se encontra no livro de José Ramos Tinhorão, A imprensa carnavalesca no Brasil -- um panorama da linguagem cômica (Editora Hedra, 2000, R$ 22). Esse mapeamento, que junto com a bibliografia constitui a terceira seção do volume, por si só justifica a publicação.
Na verdade, é o que importa no livro, pois as duas outras partes têm interesse menor. A primeira, intitulada "A linguagem cômica: da graça oral às formas escritas", é um vertiginoso panorama histórico, que vai mais ou menos do séc. V ao XVI, e apresenta as diferentes práticas cômicas em que o autor discerne a matriz "popular" ou a feição "carnavalesca"; a segunda ("A linguagem da imprensa carnavalesca: a graça oral na forma escrita"), busca situar os textos brasileiros ligados ao Carnaval na tradição apresentada na primeira.

O primeiro problema que se identifica na leitura é a falta de hierarquia na exposição dos resultados da pesquisa, pois em todos os capítulos abundam informações acessórias ou mesmo impertinentes. Ao mesmo tempo, dados importantes sobre o objeto (por exemplo: a natureza, quantidade ou temática preferencial dos textos dos jornais, o período de existência desta ou daquela agremiação ou publicação) estão ausentes do texto expositivo. A impressão geral, por isso, é que se trata de um trabalho pouco amadurecido e algo apressado. Impressão essa reforçada pela falta de cuidado com a composição, pois há incorreções de todo tipo, tanto na redação do autor, quando no trabalho editorial, o que redunda em frases confusas ou truncadas, repetição de palavras, além de várias gralhas tipográficas menores.
Ao final da leitura, o problema maior se apresenta. As duas primeiras seções do livro, apesar de trazerem muita informação, deixam a desejar sob qualquer aspecto: como panorama histórico, são incomodamente sumárias; como ensaio interpretativo, têm pouco fôlego e pouca novidade, pois quando o autor identifica problemas culturais complexos, que poderiam render muito, acaba não os tratando com a abrangência e a profundidade necessárias. Por exemplo, ele nos diz que, por volta de 1860, existiu um forte movimento de reunião de pessoas da incipiente classe média em clubes e sociedades de índole cultural e festiva. Mas não vai adiante na análise desse movimento. O que isso poderia significar enquanto esforço de civilização e busca de novas formas de convivência burguesa numa sociedade escravocrata? Qual a função e a especificidade da literatura e do cômico produzidos nessas associações? Qual a coloração política desses agrupamentos? Nenhuma dessas questões lhe ocorre, e ele apenas assume o ponto de vista da velha riqueza senhorial, escrevendo: "acontece que esse tipo de gente, mesmo quando alcançava (quase sempre pelo comércio) posições privilegiadas facultadas pelo dinheiro, não conseguia ir além da imitação formal das preferências e atitudes dos reduzidos grupos de elite: arranhado o verniz das aparências burguesas (...) revelava-se a condição real de oriundos das baixas camadas da cidade ou do mundo rural" (p. 102).
Da mesma forma, embora detecte a participação de "literatos" nos jornais carnavalescos e lamente o uso propagandístico dos versos cômicos no final do séc. XIX, não relaciona esses tópicos nem com o prestígio social da educação literária nos primeiros tempos republicanos, nem com a dupla face da vida literária do período, a "oficial" e a boêmia, nem com o movimento geral de profissionalização do escritor. Ou seja, não descobre nem valoriza as zonas furta-cores: a sobreposição do erudito e do popular, do comercial e do espontâneo, do "familiar" e do debochado, etc. É que Tinhorão está obcecado pela tese de que os jornais carnavalescos brasileiros foram "experiências continuadoras da velha tradição do cômico-literário herdado da Idade Média". E porque está interessado neles apenas enquanto tal, despreza os cambiantes genéricos e sociais em que reside a especificidade do seu objeto, para reforçar uma insuficiente tipologia opositiva, na qual o papel de herói derrotado cabe à "velha tradição" e ao "popular". Do ponto de vista interpretativo, assim, não me parece que o livro valha a pena. Vale, porém (e muito), como fonte documental. Por isso mesmo, é lamentável que não traga uma boa antologia dos periódicos que identificou e estudou.
 Sem antologia, além da relação dos jornais resta a ideia central do livro. Quanto a isso, o que me ocorre é transcrever a frase de um jornal de 1881, que se encontra na p. 147: "A tese, neste sentido, é nula, inadmissível, mas provável de canonização tóxica".



Publicado no jornal Correio Popular, de Campinas, em 06 de janeiro de 2001

Errâncias de Décio Pignatari



ERRÂNCIAS de Décio Pignatari

 [Jornal 11]

              
             Décio Pignatari publicou há pouco tempo um livro chamado Errâncias (Editora Senac, R$ 32). Como todos os títulos do autor, este também não admite a indiferença como resposta. Composto com um senso agudo de provocação, visa a polêmica. Não é exatamente um livro de memórias, nem de ensaios filosóficos, semióticos ou políticos, nem de narrativas de viagem; tampouco é um conjunto de crônicas de celebração dos totens concretistas, ou uma série de estudos sobre eles. É tudo isso alternada ou misturadamente.
                Errâncias se inscreve preferencialmente, entretanto, no gênero memorialístico, já que se assume como "biobalanço" e em várias partes é francamente evocativo de eventos biográficos de alcance estritamente pessoal. Mas esse lugar genérico não é imune à corrosão, pois o livro tem, como objetivo confesso, montar-se como uma "colagem autobiográfica de pedaços de biografias alheias". A descrição parece muito adequada para descrever o que aqui se encontra. Quando todos os fatos, pessoas, registros fotográficos e ainda a história da semiótica, da poesia, da cultura e da política brasileira são assimilados ao registro autobiográfico e apenas em função dele valorados e interpretados, obtém-se um gênero novo. É essa a novidade do livro, e dela procedem simultaneamente a força provocativa e o estranho encantamento que o livro adquire, tão logo se vença a resistência originada pela egolatria que o percorre como um baixo-contínuo. Isto é, tão logo a perspectiva egocêntrica, autocelebratória, seja assimilada como recurso genérico, entendida como estratégia textual. Se não for assim, aliás, não há como prosseguir de boa vontade na leitura de um texto cujo autor pretende falar de um lugar inaugural, do pórtico de uma nova atualização do "pensamento experimental", que o seu senso de medida aproxima e compara, de alguma forma, ao que representou a adoção do alfabeto na história da humanidade.
                Bem desenhado, o volume é um belo objeto. Alternam-se as páginas brancas, de letras negras, com as páginas negras, com letras em azul claro, que delimitam os 'capítulos' ou 'seções'. Em todos, com exceção do último, o texto é um diálogo intenso com as imagens fotográficas que os abrem e fecham. Essas imagens -- muitas das quais têm interesse em si mesmas -- são de vária ordem. Há desde fotografias anódinas de paisagens agrestes ou urbanas, como as feitas por qualquer turista, até retratos posados, passando por instantâneos de figuras como Borges, João Cabral, Tarsila e Jakobson.
                A linguagem também oscila, variando o registro conforme a natureza da seção, da relação com o objeto visual, ou sem razão evidente. O que se mantém inalterado é o impulso reflexivo e de combate cultural, que mesmo na história infeliz do pugilista Paulo de Jesus descobre matéria não só para evocar e descrever em termos poéticos a "escritura do seu boxe", mas ainda para verberar "os fáceis clamores de louvor e entusiasmo por feitos e obras lambuzadas de ungüentos nacionalistas auto-satisfacientes" que se evolavam da "rota tenda-circo cultural do Brasilumpem" da década de 50, em que não havia lugar para o "rigor elegante de uma arte que não encontrava aplauso".
Na maior parte do tempo o texto corre solto, "a ponto de não se perceber estilo nenhum, o que inclui a busca ou a pretensão de um não estilo", como o autor mesmo se incumbe de avisar na "Apresentação". Em alguns momentos, vale-se do pastiche, da paródia ostensiva, como nesta abertura do texto "Levallois": "O tempo do olhar não é o tempo do ler, ouvir, cheirar, apalpar. É um tempo do passar e do ficar, nem sempre o do projetar, que é o tempo de pensar." Mas quase a cada momento, com maior ou menor extensão, encontram-se passagens como esta, em que rebrilham ligeiramente nomes e conceitos: "Traduzida para a superestrutura semiótica, o conflito apresenta fascinantes e intrigantes aspectos nas áreas-limite do verbal (simbólico) e do não verbal (icônico), aquele tentando monitorar, quando não subjugar este, pois o vértice do conceito hegeliano é a lei ('argumento' peirciano), que se esparrama para as bases sob a forma verbal" (p. 136).
                Multifacetado, o volume traz algumas seções belas (e, mesmo, comoventes), como o texto intitulado "Delfos", em que o relato autobiográfico domina, praticamente absoluto.  Seja por isso mesmo, seja pela posição que ocupa na seqüência, "Delfos" tem uma força de evocação, de presentificação, que o torna muito destacado dos demais. Também ficaram mais intensamente na minha memória de leitura, mas em segundo plano, os seguintes: "Jakobson", "Vidraria" e "Franklin Horylka". Não é muito, para um livro tão cuidado do ponto de vista gráfico e tão pleno de investidura intelectual, mas é suficiente para, junto com passagens isoladas de cada um dos outros textos, garantir o interesse da obra, que é composta com inteligência.
                Pignatari, falando de Jorge Luis Borges, escreve que este "passa a ser um contador de histórias das histórias, metalinguagem da ficção narrativa, despeitada, com alguma graça ou humor, para assegurar-se distância e superioridade". Parodiando a formulação, poderia dizer que Pignatari faz aqui uma espécie de metalinguagem da narrativa memorialista, com muita digressão reflexiva em que se mobilizam importantes referências culturais. E o faz para assegurar-se a mesma superioridade. No seu caso, porém, é quando a distância e o despeito diminuem que surge o melhor do livro: o discurso evocativo, que é de boa têmpera. Nesses momentos, tudo – evocação, reflexão e exposição de conceitos – se amalgama. Nos demais, em que o discurso evocativo tem menos peso, tudo parece reduzir-se a índices, emanações, produtos imediatos de uma personalidade que se proclama digna, por si mesma, de atenção e homenagem. Ou seja, a exposição egocêntrica cessa de ser artifício provocativo que se conhece, se apresenta e funciona como tal, e se deixa ler apenas como impostação.


Texto publicado no jornal Correio Popular, de Campinas, em  21 de outubro de 2000